Invisibilidades locais: como inovar e empreender polos de autonomia em tempos de crise?

O principal objetivo deste artigo é dar relevo às potencialidades da Associação de Moradores e Empreendedores do Beato (AMEBEATO) para inovar e empreender soluções adaptadas ao contexto dos moradores e empreendedores locais. Nesse sentido, partilho a minha visão e desenho propostas que considero pertinentes e úteis à comunidade local, tendo em conta algumas especificidades que identifico no Beato e vizinhança do Bairro da Madre de Deus. Farei um breve recorte teórico sobre dois conceitos, inovação social e empreendedorismo, fazendo depois a ponte com as potencialidades que reconheço na AMEBEATO e propondo possíveis linhas de ação.

Considero que existem interdependências entre os domínios ambiental, social, económico, cultural e ecológico que podem ser melhor compreendidas, de um modo integrado. Especialmente quando procuramos aplicar uma visão estratégica efetivamente coletiva, participativa, inclusiva, entre os diferentes agentes sociais de um território. Essas interdependências podem ser compreendidas como invisibilidades a nível local.

Se pensarmos que existem pessoas e/ou empresas/instituições que vivem/existem décadas num mesmo local sem serem verdadeiramente ouvidas ou integradas nos seus territórios, por diversas razões, como por falta de voz política ou representatividade, por mera opção, por desconhecimento, falta de recursos ou até de motivação, ficará mais fácil compreender o conceito das invisibilidades locais. Esse é o mote desta partilha. Explorar as invisibilidades locais a par de dois conceitos que são chave na minha atividade profissional atual, inovação social e empreendedorismo, numa perspetiva do domínio científico da ecologia humana. E porquê nesse domínio?

Porque uma identidade fundamental da ecologia humana é o estímulo à participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão política (Pires & Craveiro, 2010). Também, porque procura integrar diferentes fontes de conhecimento (o que ainda é um desafio) e sinergias numa perspetiva socio-ecológica, o que requer muitas vezes uma visão de longo prazo no desenvolvimento de ações coletivas (Bruckmeier & Pires, 2018). Na verdade, a pandemia COVID-19 veio dar relevo a novos desafios, comparando aos que já tínhamos anteriormente, quando pensamos no contexto atual e na necessidade de repensarmos a nossa relação com a natureza (Pires I., 2020).

A teoria do empreendedorismo de Schumpeter associa o empreendedorismo não apenas à criação e desenvolvimento de negócios, mas também à inovação, onde o fator humano é fundamental, sendo útil compreender com maior precisão e em contextos específicos conceitos como empreendedorismo e inovação social (Parreira & Freitas, 2022). Malerba & McKelvey (2020), inspirados pela teoria do empreendedorismo de Schumpeter, salientam o empreendedorismo baseado no conhecimento intensivo como um dos mais relevantes, tendo em conta os desafios associados a uma economia do conhecimento. Os mesmos autores afirmam que os empreendedores podem ser compreendidos como criadores de oportunidades, mas que também são muito dependentes das infraestruturas associadas à partilha de conhecimento, dos agentes sociais envolvidos e do contexto institucional nesses processos. Assim, relembram-nos que o empreendedorismo é fortemente influenciado quer pela existência de redes e canais, através dos quais o conhecimento é comunicado, partilhado e/ou produzido, como também da complementaridade de competências e conhecimentos dos agentes sociais envolvidos nesses ecossistemas de inovação. Em relação à inovação social, apesar de ser um conceito antigo, ainda é pouco compreendido especialmente quando utilizado sem um contexto específico e critérios bem definidos (Moulaert & Mehmood, 2020). Na verdade, não existe uma definição global para inovação social (Ravazolli et al., 2021). De acordo com estes últimos autores, é geralmente aceite que a inovação social está associada a processos de transformação de práticas sociais, de produção de novos produtos e/ou serviços e novos modelos organizacionais. Contudo, e embora o interesse pela inovação social tenha aumentado entre as comunidades académicas e políticas, ainda há uma lacuna de conhecimento sobre as contribuições potenciais da inovação social para a implementação dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 (Eichler & Schwarz, 2019). Estes autores concluíram que existem mais de duzentas definições de inovação social na literatura académica que analisaram, se bem que é possível encontrar 5 elementos comuns (colaborações e parcerias, necessidades sociais, soluções inovadoras, implementação e execução e melhorias), identificados na figura abaixo desenhada para ilustrar essa realidade:

Fonte: Maria João Horta Parreira numa adaptação do trabalho de Eichler & Schwarz (2019)

Os detalhes anteriores, associados à complexidade da crise ecológica atual, estimulam a necessidade de melhorar e explorar novas abordagens integradas e adaptadas, como por exemplo investigar a inovação social associada a questões de desenvolvimento local, especialmente quando se considera uma lógica de participação coletiva local (Justen et al., 2020). Nessa visão, será pertinente lembrar que a inovação social ocorrerá com benefícios mais expressivos quando o estado, as comunidades locais e as organizações intermediárias trabalharem em conjunto (Lukesch et al., 2020). Também, que a co-criação é um aspecto-chave da inovação social, numa perspetiva ecossistémica de redes complexas entre diferentes agentes sociais, e que a sociedade civil é um elo vital nessas dinâmicas (Kumari et al., 2019).

Quando faço diariamente os meus passeios pela vizinhança, observo as várias hortas locais, algumas bem tratadas embora outras pareçam estar abandonadas. Desde o início, quando vim viver para o Beato, fiquei sensibilizada para essa realidade. Tendo em conta referências como a FAO et al. (2022) e a minha própria experiência no âmbito das hortas urbanas, têm sido várias as potencialidades que consigo discernir, pensando nas possíveis iniciativas coletivas que poderão ser pensadas e planeadas com base nessa realidade. Tendo como cenário principal os vários desafios atuais, que a própria pandemia COVID-19 e o contexto de guerra na Ucrânia vieram acentuar, considero que questionar e pensar em conjunto será um primeiro passo a dar para fazer emergir e desenvolver processos de co-contrução coletivos a nível local. Destaco de seguida alguns temas, alguns deles interdependentes, que poderão dar um enquadramento às questões a explorar, às possibilidades relativas a estratégias e iniciativas locais a desenvolver no Beato, como por exemplo: a autonomia alimentar, os circuitos curtos entre produtores de alimentos e consumidores, a problemática do desperdício alimentar, a educação agro-ambiental, a saúde e bem-estar coletivos. Desse modo, penso que numa visão territorial será interessante olhar para os espaços ocupados pelas hortas e outros espaços verdes no Beato como “espaços de experimentação criativos”, criando laços com diferentes atores locais dos diferentes setores e domínios de atividade (ex. academia, associações, autarquia, cidadãos, escolas, empresas, ONGs, etc) evitando “agir em bolhas isoladas” e auscultando diferentes fontes de conhecimento, abordagens e práticas. Num contexto de incerteza e de vulnerabilidade, penso ser uma via a experimentar. Ponderar coletivamente a recuperação desses espaços, numa visão de um bem comum, aproveitando a diversidade de pessoas residentes e instituições existentes no Beato. Existe uma população sénior residente, cujo conhecimento sobre os espaços verdes e envolvimento nesse processo poderá agregar ainda mais valor coletivo. Igualmente, as escolas serão parceiros interessantes nesse domínio. Também, já temos potenciais parceiros a desenvolver projetos muito interessantes, numa visão ecossistémica de inovação: O Hub Criativo do Beato. O recurso a fontes de financiamento será uma outra via para a AMEBEATO, estabelecendo por exemplo pontes com a iniciativa pública Portugal Inovação Social[1], entre outras possibilidades. A meu ver, a visão da AMEBeato deverá ser norteada pela procura da sistematização da informação disponível e realização de diagnósticos, no sentido de melhorar estratégias e tomadas de decisão a nível local. Diagnósticos temáticos sobre as potencialidades associadas às realidades sociais do Beato e vizinhança e sobre as capacidades para fazer emergir práticas inovadoras que possam minimizar a “invisibilidade” de contextos locais menos favorecidos e de “vozes silenciosas”. Partilho esta TED de Michael Porter[2] “Why business can be good at solving social problems”, apesar de ser de 2013 considero-a pertinente e atual tendo em conta o objetivo deste texto.

Mais do que dar respostas prontas e estanques à questão desenhada no título deste artigo, procurei levantar questões e estimular o pensamento crítico. Somos todos parte integrante de uma teia complexa, quer a nível individual, coletivo, público ou privado.

Nesse sentido, será importante agirmos a nível local, em proximidade, procurando criar “polos de autonomia socio-ecológicos”, um conceito que identifiquei nalguns trabalhos académicos e que me parece muito interessante, a par das interdependências entre os domínios ambiental, social, económico, cultural e ecológico. Nessa via, interpreto a AMEBEATO como um mediador chave nesse desafio coletivo, se bem que a pluralidade de intervenientes, de perspetivas e propostas de ação são uma fonte importante de inovação, onde a atitude empreendedora e gestão de riscos são também fatores críticos nesse processo. Em complemento, será importante não esquecer que novas soluções poderão criar novos problemas e que, portanto,será um processo dinâmico e contínuo, em monitorização, adaptação e alerta constantes. Na minha perspetiva, criar uma dinâmica regular, num compromisso coletivo de responsabilidade social, de confiança mútua e cooperação na procura de linhas de ação criativas e transformadoras para o território onde vivemos e empreendemos, será um caminho a desenhar, implementar e monitorizar entre todos, em linha com a visão da Estratégia Portugal 2030[3] e da Agenda 2030[4].

Maria João Horta Parreira – Moradora no Beato desde 2019 e associada da AMEBEATO, Investigadora e Estudante de Doutoramento em Ecologia Humana da Universidade Nova de Lisboa, FCSH-NOVA

[1] Disponível neste link: https://inovacaosocial.portugal2020.pt/sobre/portugal-inovacao-social/

[2] Disponível neste link: https://youtu.be/0iIh5YYDR2o

[3] Disponível neste link: https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/documento?i=resolucao-do-conselho-de-ministros-que-aprova-a-estrategia-portugal-2030

[4] Disponível neste link: https://unric.org/pt/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel/

Referências

Bruckmeier, Karl; Pires, Iva (2018) Innovation as transformation – integrating the socio-ecological perspectives of resilience and sustainability, in Pinto, H.; Noronha, T.; Vaz, E. (Ed.) Resilience and Regional Dynamics: an International Approach to a New Research Agenda (chapter 11, pp209-232). Regional Science Series. Switzerland: Spinger International. ISBN 978-3-319- 95134-8; ISBN 978-3-319-95135-5 (e-Book).

Eichler, G. M., & Schwarz, E. J. (2019). What sustainable development goals do social innovations address? A systematic review and content analysis of social innovation literature. Sustainability11(2), 522

FAO, Rikolto & RUAF. 2022. Urban and peri-urban agriculture sourcebook – From production to food systems. Rome, FAO and Rikolto. https://doi.org/10.4060/cb9722en

Justen, G. S., Morais-da-Silva, R. L., Takahashi, A. R. W., & Segatto, A. P. (2020). Inovação social e desenvolvimento local: uma análise de metasíntese. Revista de Gestão Social e Ambiental14(1), 56-73.

Kumari, R., Kwon, K. S., Lee, B. H., & Choi, K. (2019). Co-creation for social innovation in the ecosystem context: The role of higher educational institutions. Sustainability12(1), 307.

Lukesch, R., Ludvig, A., Slee, B., Weiss, G., and Živojinović, I. (2020). Social innovation, societal change, and the role of policies. Sustainability, 12(18), 7407.

Malerba, F., & McKelvey, M. (2020). Knowledge-intensive innovative entrepreneurship integrating Schumpeter, evolutionary economics, and innovation systems. Small Business Economics, 54(2), 503-522.

Moulaert, F., & Mehmood, A. (2020). Towards a social innovation (SI) based epistemology in local development analysis: lessons from twenty years of EU research. European Planning Studies28(3), 434-453.

Parreira M.J. & Freitas M. (2022). Social Innovation and Young Rural Entrepreneurship: Identifying An Integrated Research In Less Favored Portuguese Rural Territories. IJBRM Special Issue – Social Entrepreneurship, Innovation and Finance: Theory and Practice in Challenging Times (SIBRM9).

Pires I. (2020). Cinco Ps (Pessoas, Planeta, Paz, Prosperidade e Parcerias) mauis um P (pandemia): o papel da COVID-19 no aumento das desigualdades sociais. In: Marques J, Dias-Lima A )org.) Ecologia Humana e pandemias: consequências da COVID-19 para o nosso futuro (pp. 114-137), Paulo Afonso, BA: SABEH.

Pires, I. M., & Craveiro, J. L. (2010). Human Ecology: Past, Present and Future. Studies in Human Ecology, 26-44.

 Ravazzoli, E., Dalla Torre, C., Da Re, R., Marini Govigli, V., Secco, L., Górriz-Mifsud, E., … & Nijnik, M. (2021). Can social innovation make a change in European and Mediterranean marginalized areas? Social innovation impact assessment in agriculture, fisheries, fores

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